18 julho, 2010
storytelling
A fotografia tem copyright à vista, por isso espero que o autor não se importe que eu a coloque aqui.
É sabida a vertente do storytelling como co-natural ao hip-hop, sendo isso mesmo testemunhado pelos inúmeros mc's que a ele (storytelling) se dedicaram desde que o hip-hop deu os seus primeiros passos - basta pensarmos em nomes como Rakim, ATCQ ou Slick Rick (a lista é extensíssima mas estes exemplos bastam-nos). E a vertente ganhou traços de tradição, hoje cada vez menos praticada, mas com um élan muito próprio e que, volta meia, vai sendo recuperada aqui e ali.
Em Portugal temos bons storytellers? Temos, claro. Limitando-me ao espectro do hip-hop português (porque o storytelling, nas suas variantes, é transversal à música, basta para isso pensarmos em Sérgios Godinhos, Jorges Palmas, etc., para não ir mais longe), diria que os Dealema (de quem talvez seja expoente máximo a célebre "O Começo"), Pacman (Da Weasel), Boss AC (talvez o mais forte), Valete ("Roleta Russa" é incontornável), Sam the Kid (quem não conhece "O Recado"?) e, mais recentemente, Nerve, são alguns dos melhores praticantes que temos por cá (poderei estar a esquecer alguém, naturalmente, mas esta enumeração não pretende ser exaustiva).
Todavia, e isto é uma coisa que tenho vindo a pensar, com o Sam the Kid o storytelling atinge níveis de instrospecção superlativos, com descrições sensoriais (física e mental) e de tempo-espaço de um hiper-realismo único. É incrível a minúcia, quase neurótica, diria, com que vemos, cheiramos ou tocamos o "quadro" que nos é descrito, como se estivéssemos quase quase naquele local, com aquele ambiente, as luzes, o barulho, o silêncio... tudo.
Não é um storytelling, digamos, convencional, em que ouvimos uma história bem contada do princípio ao fim; mais do que isso, mais do que um fio narrativo, estão constantemente a ser introduzidos apontamentos descritivos de movimento, tempo e espaço, acompanhados de notas irónicas, moralistas e introspectivas. O que acontece frequentemente no storytelling é o facto de a história, por melhor que seja, ser perspectivada à partida já como isso mesmo: como uma história - um acontecimento passado, mais ou menos remoto, que vai ser contado a alguém. o ponto de partida de quem a constrói é, em certa medida, o proverbial "Era uma vez...".
Ora isso não acontece no Sam. É que a sua história é muito mais "actual", no sentido de que tudo parece estar a acontecer naquele momento imediato, sugerindo ao ouvinte estar a acompanhar "in loco" a acção, como que se estivesse nas costas das personagens a seguir-lhe todos os seus passos. Este "imediatismo" é fruto da tal componente altamente descritiva (volto a insistir: quase neurótica) no que diz respeito ao espaço onde se encontram as personagens e às sensações que se lhes atravessam. Esta dimensão sensorial, do ponto de vista visual, chega a ser tão forte que momentos há em que sinto deixar de estar nas costas da personagem e passo a ver o exterior através dos seus próprios olhos. Enquanto ouvimos o que nos vai ser contado, estamos totalmente "a par" de como esta ou aquela personagem se sente, se está confortável, o que lhe vai na cabeça, como está sentada, se está ofegante ou com a respiração tranquila, se está frio ou calor, ....
Os dois registos que deixo aqui (que não serão desconhecido para quase ninguém - "Sexta Feira" e a segunda parte de "16/12/1995", a partir do minuto 4:33) têm a particularidade de terem uma série de aspectos em comum: o discurso na primeira pessoa; o facto de a acção decorrer à noite, num bar ou discoteca; o flirt característico de um local desses e todo o ambiente intimista e assexuado a ele inerente; o percurso de saída desse local e o "próximo destino"; e, por fim, o climax de uma tensão acumulada ao longo de todo o encadeamento narrativo e que surge expresso numa conclusão mais ou menos trágica, mais ou menos moralista.
A grande diferença, a meu ver, está na sonoridade de cada um dos beats (para além, claro, do facto de "16/12/95" se situar num contexto temático específico - os rumos que (in)voluntariamente tomamos na vida): em "16/12/1995" ela é manifestamente mais tensa, mais furiosa, desvendando um pouco mais do desfecho trágico que de alguma forma se pressente (nunca deixa de estar presente, ainda que subliminarmente) ao longo da narrativa. Já em "Sexta feira", a sonoridade é muito mais relaxada, contemplativa e, e isto é dedo de um compositor (ou produtor, chamem-lhe o que quiserem) talentoso, profundamente noctívaga, a fazer jus ao tempo e espaço da história que nos é contada... No fundo, há aqui mais suspense do que thriller (como acontece na primeira).
A partir de 4:33
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2 comentários:
muito bom!
thanks bro:)
Isto de fazer viagens ida e volta de Viseu sempre a ouvir o Sam alimenta muitas ideias. :)
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