12 setembro, 2010
Sabes que gente e que terra são estas?
Estava eu a ouvir Radio (2009), álbum do magnífico produtor Exile (conhecido, entre outras coisas, por produzir o rapper Blue ou a nova coqueluche americana Fashawn), quando, à oitava faixa (intitulada "The Sound is God"), começo a sentir, passados os primeiros dez segundos, uma toada próxima do nosso fado, onde não faltam os inevitáveis dedilhados de guitarra. Esperei mais uns 20, 30 segundos e não é que... a Mariza, sim, a nossa Mariza, canta? A música samplada é "Oh gente de minha terra", originalmente de Amália Rodrigues, mas aqui interpretada por Mariza.
Contas feitas, o Exile samplou a Mariza e ela certamente não saberá.
Mas saberá Exile quem é Mariza? Isto é:
foi o sample escolhido mais ou menos aleatoriamente, retirado de uma pilha de vinis comprados numa qualquer loja de discos recôndita, e "colado" no beat porque se inseria bem na composição melódica específica que o autor pretendia para o mesmo - o produtor a servir-se do sample, numa acepção mais crua;
OU
Exile sabe que o que Mariza canta é português, chama-se fado e é um género musical popular com raízes fundas no nosso país e no nosso povo (eventualmente saberá quem é Amália Rodrigues?), e que pegou nele, não num exercício puramente recreativo ("fazer música"), mas porque obedeceu a uma selecção rigorosa e de uma enorme sensibilidade, e em que escolhe aquele fado por ser fado, aquela voz por ser a de Mariza? - produtor e sample numa comunhão harmoniosa em que ambos ganham, reciprocamente.
Talvez esteja a ser demasiado exigente (e bem sei que esta questão não é radicalmente dual, do tipo "sim ou não"), mas a verdade é que me interrogo sobre isto numerosas vezes, sobretudo quando oiço álbuns instrumentais (e experimentais) de hip-hop. Por outro lado, sei que existem, de facto, produtores que depositam uma profunda e minuciosa sensibilidade na escolha de um sample, de um arranjo. O J Dilla era um deles. E em Portugal temos o inevitável Sam the Kid, de quem cada beat que oiço, sei-o escolhido a dedo e fundado numa relação quase alquímica entre o som no seu estado bruto e a alma de quem o decanta e o musica num beat. E há muitos, muitos mais.
Como já disse, talvez esteja a ser demasiado exigente, mas o certo é que esta não é uma questão secundária. Para quem gosta de música - e gostar de música é diferente de gostar de ouvir música -, não é uma questão subsidiária a de saber que tipo de relação tem o “criador” com a “criatura”: essa relação é depois marca indelével na alma, na emoção (e não tanto no profissionalismo/qualidade/competência ou no “belo” matemático) que uma música nos suscita, na comoção que nos provoca. E se a música não é alma, se não é emoção, então não sei o que é música.
É um exercício curioso: oiçam uns cinco álbuns instrumentais de hip-hop (mais ou menos ortodoxos, não interessa) e tentem responder a esta pergunta: notam o mesmo tacto e a mesma preocupação do produtor na escolha de cada sample (seja ele uma melodia de guitarra, uma voz, uma pequena frase de um filme ou um anúncio publicitário)?
Fica a sugestão. E deixo cinco discos para quem o quiser fazer:
Radio (2009), Exile.
Dream Merchant, Vol 1 (2005), 9th Wonder
The Private Press (2002), DJ Shadow
Tales Of The Forgotten Melodies (2005), Wax Tailor
Music to Make Love to Your Old Lady By (2001), Nathaniel Merriweather
P.S.: Radio é um disco fantástico.
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2 comentários:
Ahaha, já vens um pouco atrasado, isso foi até muito falado por cá aquando do lançamento do disco. Ainda assim, belo texto, e bela sugestão de exercício auditivo ;)
Pois! Eu quando ia a meio do texto tive a sensação de que já tinha lido qualquer coisa a propósito da questão... Mas como só agora ando a ouvir o "Radio", só agora fui apanhado de surpresa!
Obrigado pelos props e pela visita! :)
Ah!, e já agora, quem és?
Um abraço,
Francisco.
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